terça-feira, setembro 26, 2006

Também eu estou Farta!

Poética

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.



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eu também gosto de palhaços Tio Manuel Bandeira.

acredita, fosses tu vivo agora e bastava-te abrir um jornal ou um televisor para te entrar um mar de palhaços casa dentro, sem lirismo nenhum.

water-photography

sexta-feira, setembro 15, 2006

ma que jete, moce?!

at Alamy

o que me dá même raiva, daquela de enfurecer é ver tanta gente inútil a comer e a beber, de cravo vermelho em riste como se fosse bandeira. quando nunca lá estiveram e nem poderiam estar.

comem bebem como odres e viva a revolução!
(são os vampiros de agora?)

a revolução? é de rir!
se fosse feita por eles, se assim foi mal acabada, nem chegava a começar. era cravo por abrir.

é que ele houve quem lutasse e até mesmo quem morresse sem ninguém os conhecer. desses não se ouve falar.

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Um copo de vinho fresco
como um fresco pensamento.
Vinho fresco
teve o sol por fermento.

Um copo de vinho fresco
em Lisboa, Campolide.
Um amigo que foi morto
pela Pide.

Um copo de vinho fresco,
consciência revoltada,
mecanismo tic-tac
de granada.


Fernando Correia da Silva



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vim só separar as águas, que tenho o copo cheínho, à beira de transbordar!

quinta-feira, setembro 14, 2006

ó moce, tu tem-te quete!

davidkphotography


é que tás só e...nem sabes.


Poema do Homem Só


Sós,

irremediavelmente sós,

como um astro perdido que arrefece.

Todos passam por nós

e ninguém nos conhece.



Os que passam e os que ficam.

Todos se desconhecem.

Os astros nada explicam:

Arrefecem



Nesta envolvente solidão compacta,

quer se grite ou não se grite,

nenhum dar-se de outro se refracta,

nenhum ser nós se transmite.



Quem sente o meu sentimento

sou eu só, e mais ninguém.

Quem sofre o meu sofrimento

sou eu só, e mais ninguém.

Quem estremece este meu estremecimento

sou eu só, e mais ninguém.



Dão-se os lábios, dão-se os braços

dão-se os olhos, dão-se os dedos,

bocetas de mil segredos

dão-se em pasmados compassos;

dão-se as noites, e dão-se os dias,

dão-se aflitivas esmolas,

abrem-se e dão-se as corolas

breves das carnes macias;

dão-se os nervos, dá-se a vida,

dá-se o sangue gota a gota,

como uma braçada rota

dá-se tudo e nada fica.



Mas este íntimo secreto

que há no silêncio concreto,

este oferecer-se de dentro

num esgotamento completo,

este ser-se sem disfarce,

virgem de mal e de bem,

este dar-se, este entregar-se,

descobrir-se, e desflorar-se,

é nosso de mais ninguém.



António Gedeão.



(desculpem possíveis erros por citado de memória)